Opinião

Auxílio Brasil: política pobre, para os pobres

Não quero subestimar o “B17”, mas em tempos em que se come ossos e comida das lixeiras dos hipermercados, são necessárias bem mais que migalhas temporárias para acalmar o povo.

Por Tainara Hanke

Assim como todos os brasileiros, fui surpreendida no início do mês de outubro pela notícia do fim do programa de transferência de renda Bolsa Família, programa criado no primeiro governo do PT, quando foi considerado revolucionário principalmente por ser um benefício “barato’’, pois pagava R$ 89 reais as famílias sem crianças, e em torno de R$ 34 e R$ 47 reais por criança e adolescente. Segundo o governo, seria substituído pelo programa federal Auxílio Brasil.

Demorei para escrever sobre o tema, pois esperava mais informações sobre esta nova ação governamental, para que assim pudesse fazer uma análise crítica mais profunda. No entanto, passados mais de 40 dias do anúncio feito por Bolsonaro, as informações repassadas aos técnicos envolvidos nessas políticas públicas, e consequentemente à população brasileira, são mínimas, demostrando mais uma vez a falta de transparência desse governo e do compromisso em construir políticas públicas com a participação popular.

Honrando a tradição brasileira, Bolsonaro, ao invés de qualificar as ações públicas, as revoga. E, ao substituir o capenga Bolsa Família, se desvia ainda mais do fino véu de proteção social do país. Como bom conservador de direita, implementa as pressas programas e ações pobres que “beneficiam” os pobres só quando se aproxima as eleições, a final “pé de pobre não tem número”.

Do chamado Auxílio Brasil ainda não se sabe como as famílias do Bolsa Família migrarão para o novo programa, também como serão atendidos os que recebem o auxílio emergencial, pois nem todos os que receberam esse auxílio serão beneficiados. Sabe-se que o valor de R$ 400 reais será gradativo, não haverá mais necessidade de cadastramento no CadÚnico (principal fotografia da pobreza no Brasil, junto com os dados do IBGE) e que não haverá mais a condicionalidade escolar e de vacinação.

Mesmo com o pouco que sabemos desse novo programa, é fácil concluir que se trata de mais um passo no desmonte da nossa já tão frágil seguridade social. Na realidade, o Auxílio Brasil se constitui em uma ação eleitoreira, não uma política pública. Sem orçamento para 2023, o programa federal tem prazo de validade, e seu objetivo é destrutivo. Com esse programa, o governo Bolsonaro procura a reeleição para implementar mais ataques aos direitos sociais, e reafirmar seu programa eugenista e genocida contra a população pobre.

Os profissionais que atuam nas áreas de assistência social, da saúde, da educação, e da previdência social sabem bem do que estou falando, pois faz parte do cotidiano de trabalho, a precarização massiva dos serviços, dos atendimentos, e das condições de atuação, pois o Estado acredita que a população necessita do mínimo para viver, e não do básico para seu desenvolvimento.

As políticas de assistência social, de certa forma, são conservadoras.

Há várias formas de se pensar, planejar e executar políticas públicas que realmente atendam às necessidades básicas da população mais vulnerável, mas em uma sociedade de classes, as políticas de seguridade social são estratégicas no sentido de equiparar, amenizar, e acomodar as tensões causadas pelas mazelas sociais oriundas do capitalismo.

É um grande engano acreditarmos que a partir das políticas públicas seria possível realizar as mudanças estruturais profundas na sociedade de que tanto precisamos, pois sua origem e necessidade se dá justamente para responder a consequente miséria gerada pela forma de organização social existente. Portanto, as políticas de assistência social, de certa forma, são conservadoras.

Para enfrentar de forma efetiva a miséria cada vez maior, são necessárias mudanças nas bases econômicas, é necessária a implantação de outra forma de produção que atenda as nossas reais necessidades, não a produção de mercadorias. Um sistema econômico que tenha como prioridade a geração de emprego e renda, não o lucro. A miséria humana estará sempre presente nesse sistema que é baseado na concentração e dominação dos meios de produção e das riquezas por uma pequena camada social privilegiada, e que vive da exploração do trabalho alheio. Nesse mundo cão, as políticas públicas são necessárias para salvar vidas, mas oferecerem sempre o mínimo para a existência dos indivíduos no contexto capitalista. Além de que, as políticas públicas brasileiras já nascem comprometidas pelo sexismo, pelo racismo e pela superexploração de classes.

 Lembro de ouvir de um professor, certa vez, que o Brasil odeia pobre. Sim, muitos brasileiros odeiam o pobre, mas deveriam odiar a pobreza. É este ódio, muito evidente, que baseia as políticas públicas brasileiras, onde se parte do mínimo social e não do básico para se viver. Quando se pensa no mínimo, descarta-se o que de fato é básico para a natureza humana, como a dignidade.

Ou seja, as estratégias governamentais que assistem aos pobres, são vistas sempre como despesas e não investimento social, pois destinam-se a uma gama de indivíduos dos quais lhes é negada a humanidade, e com ela o desejo, os afetos, os sonhos e ideais. Assim como acontecia nas senzalas, oferece-se aos escravizados contemporâneos, que são em sua maioria descendentes dos que viviam sob o regime escravocrata no Brasil colônia, o mínimo necessário em toda a ordem.

Nos programas de habitação, as famílias numerosas são obrigadas a morarem em cubículos de 50 metros quadrados. Na saúde, meninas e mulheres são expostas a contraceptivos com altas doses hormonais, e por isso sofrem muito mais dos efeitos adversos. Consegue-se acessar os antidepressivos, mas quase nunca há disponibilidade de profissionais psiquiatras e psicólogos. Na ala dos hospitais destinadas aos pacientes atendidos pelo SUS, os acompanhantes muitas vezes não possuem cadeiras nem lugar para passarem a noite, são horas em pé ou sentados nas escadas das camas. Na educação, o cenário é revoltante: há escolas sem banheiro, sem chão, sem classes, sem cadeiras e sem professores!

Na assistência social não se tem nem lei orçamentaria obrigatória. Os benefícios são um espetáculo de subalternidade. O número insuficiente de cestas básicas é constante, sendo que estas são compostas por pouquíssima variedade de alimentos, em quantidade insuficiente para uma família para um mês, e de baixa qualidade.

Sempre fui trabalhadora e crítica ferrenha das políticas públicas brasileiras, porque sempre penso que podemos qualificá-las e humanizá-las, rompendo com a premissa que para pobre qualquer migalha serve, e que estas estratégias servem apenas para evitar o caos social já instaurado. Sempre lutei para que o Bolsa Família pagasse um benefício digno a população, como forma de distribuição de riqueza socialmente construída e não como um voucher para não morrer de fome.

Da mesma raiz escravocrata, colonialista e exploratória que a burguesia brasileira, o programa de transferência de renda do governo Bolsonaro é uma política pública pobre em todos os sentidos, sejam estes financeiros, humanos, sociais, e também eleitoreiros, pois o que são R$ 400 reais perto da maior inflação nos últimos 20 anos?

Quando o filósofo alemão Bertolt Brecht disse “Primeiro o estômago depois a moral”, podemos nos perguntar até quando o brasileiro vai ignorar a fome de tudo e continuar a apoiar o governo? Não quero subestimar o “B17”, mas em tempos em que se come ossos e comida das lixeiras dos hipermercados, são necessárias bem mais que migalhas temporárias para acalmar o povo.

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Minha discussão sobre políticas públicas foi superficial devido ao tamanho do texto, mas indico o livro “Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais” da Potyara A. P. Pereira para quem se interessar pelo tema.