Opinião

O diálogo com os evangélicos é possível?

Nosso objetivo nunca foi desmerecer a fé das pessoas, até porque a luta é feita da fé em um mundo melhor.

Por Tainara Hanke

O ano era 1993, na longínqua e provinciana Lagoa Vermelha, interior do Rio Grande do Sul, onde minha mãe, nascida e criada na Igreja Luterana tradicional, percorria cerca de 4 km a pé, puxando a filha de sete anos pela mão, para participar do culto “tarde da benção” da Igreja Pentecostal do Evangelho Quadrangular.

Todas as quartas-feiras, em um bairro periférico, um público composto exclusivamente por mulheres e crianças, ouvia sermões sobre obediência aos maridos, e sobre a prosperidade em Deus, garantida com as ofertas e o dízimo. Neste mesmo culto, todas as participantes levavam um quilo de alimento não perecível para a pastora abençoar – sim, uma pastora mulher —, e assim combater o “devorador”, entidade espiritual responsável pela fome que aflige até hoje a população brasileira, segundo o que creem os evangélicos.

Antes de sair de casa, minha mãe me instruía a orar pela aquisição da nossa casa própria, para que não faltasse comida em nossa mesa e por trabalho para o meu pai que, com 50 anos de idade, ficou desempregado após o governo Britto extinguir a estatal em que ele trabalhava.

Este breve relato é para contextualizar como as igrejas evangélicas foram ganhando espaço na vida das famílias brasileiras, principalmente nas famílias mais pobres. Pesquisando os números relacionadas ao crescimento das congregações evangélicas pentecostais e neopentecostais, comprova-se que em momentos de recessão econômica e de agravamento da crise social, é quando ocorre a maior expansão no número de igrejas e de seus fiéis.

Mas o que afirmo nesse texto não leva em conta somente as estatísticas. Meu lugar de fala é de mulher branca, periférica, filha de um casal inter-racial, crescida dentro de uma instituição religiosa pentecostal, e que, por isso, conseguiu observar de perto o crescimento deste movimento religioso e sua aproximação com o fundamentalismo e com a extrema direita brasileira.

As igrejas evangélicas pentecostais, como a Assembleia de Deus e a própria Quadrangular, estabeleceram-se no país no início da década de 70, sendo amplamente perseguidas pelo regime militar. Esse movimento religioso nasceu nas periferias, as margens da sociedade branca e elitizada, sendo um refúgio para mães que sofriam com a fome, com o encarceramento em massa de seus maridos e filhos, com o desemprego e com a falta de perspectivas no Estado. Ainda hoje, a imagem recorrente nas pequenas igrejas evangélicas das favelas, é da mulher orando de forma apaixonada, talvez pelo seu companheiro ou pelos seus filhos, pedindo proteção contra a violência imposta pelo tráfico e pela polícia. Quando a vida é algo tão frágil, e quando não há esperanças no futuro, o que resta a esta população é se voltar para Deus e para a igreja, em busca do mínimo amparo social que lhes é negado pelo Estado.

O capitalismo se utiliza da “atomização” social para dispersar entre os seus sujeitos, os problemas sociais e econômicos causados pela forma que o próprio sistema organiza as relações sociais e econômicas. Pautas que deveriam ser coletivas, como desemprego, o uso e abuso de drogas, violência policial, violência doméstica, machismo, racismo, déficit habitacional, falta de acesso à saúde, à educação e a uma alimentação digna, entre outras, que tem suas raízes nas crises econômicas infindáveis, são tratadas como problemas de ordem individual e moral, logo podem ser resolvidos na ordem espiritual. Milhões de pessoas, assim como minha mãe, procuraram e procuram nas igrejas soluções para os problemas sociais que enfrentam, não conseguindo perceber que tais mazelas são frutos de um sistema econômico que pode ser definido como “uma máquina de moer gente”.

Nas últimas décadas houve muitas mudanças na sociedade brasileira, o que refletiu no público das igrejas evangélicas e na condução destas instituições. O pensamento neoliberal já presente nestas organizações religiosas, aprofundou-se ainda mais nessa “nova” sociedade. A influência evangélica deixou de estar presente apenas nas favelas e bairros da periferia, ganhando adeptos das classes mais altas, representadas por jogadores de futebol, modelos, artistas de todas as áreas, subcelebridades, e até grandes empresários e empresárias. Podemos dizer que a Igreja Universal do Reino de Deus e a Rede Record, comandada pelo Bispo Edir Macedo, contribuíram muito para que a religião evangélica se torna-se essa grande força social, econômica e política no país.,

As pequenas mudanças sociais trazidas pelo governo do PT mudaram também a vida das famílias da periferia. O PROUNI e, em especial, o Programa Bolsa Família, oportunizaram acesso dos mais pobres a mais anos de escolarização, e isso beneficiou também os grupos evangélicos. Eu mesma fui a primeira na família e na igreja a cursar nível superior. Células de evangelização se formaram dentro das universidades e nas casas das zonas nobres das cidades, e assim ser “crente” deixou de ser coisa de pobre analfabeto.

Porém, seguem ingênuos aqueles que acreditam que é possível superar essa sociedade extremamente desigual, dividida em classes, em raças e em gênero, através de mudanças culturais e morais, com base principalmente na educação e na religião. Pelo contrário, a nova igreja reflete a nova sociedade, e duas camadas cada vez mais distintas de “irmãos” evangélicos se forma no interior da igreja, e que podemos descrever como opressores e oprimidos.

A primeira camada é composta por uma burguesia marginal que, na maioria dos casos, é branca, racista, misógina e homofóbica. Ela possui líderes religiosos que fizeram sua formação em institutos teológicos norte-americanos, comprometidos até o cerne com o sistema neoliberal, com o fundamentalismo religiosos e com a busca por um regime político teocrático. São esse tipo de pessoas que formam o núcleo duro do governo Bolsonaro, vendo neste político o fiel representante de seu deus na Terra, que para eles, é a sua imagem e semelhança, ou seja, seu deus deve ser um homem branco, heterossexual e rico. Ouso dizer que as pessoas que compõem este grupo tiveram nas igrejas evangélicas um solo fértil para desenvolver suas neuroses e paranoias, pois receberam carta branca de seus líderes para agirem de forma mais nefasta possível, com o livre conduto de ser tudo em nome de seu deus.

Esses líderes modernos desta camada de opressores, apresentam-se de várias formas. Podem ser um misto de surfista com empresário coach, com tatuagens de cruzes e leões, dando dicas de como prosperar, pregando a paz, mas sem negar a guerra. São os famosos pró-vida e pró-armas. Estes sujeitos ignoram a realidade vivida pela grande maioria do povo brasileiro, representada também pelos seus companheiros de fé. Dizem abominar a corrupção, mas em seus negócios, assim como na sua igreja, não há crise, pois se lava dinheiro, não se paga imposto e ainda tem suas dívidas com o INSS e com a Receita perdoadas graças aos seus “irmãos” na política.

A segunda camada de “crentes” é constituída pelos oprimidos. São os que passam fome no Brasil terrivelmente evangélico de Bolsonaro. São os que nasceram e ainda vivem segregados e marginalizados nos rincões deste país. Pesquisas apontam que 31% dos brasileiros são evangélicos, destes, 58% são mulheres, 59% são negros, 41% reprovam o governo Bolsonaro e 50% possuem renda familiar de até 2 salários-mínimos. A maioria da população prisional brasileira é evangélica.

Com base nesses números, podemos concluir que a ampla maioria da população que se diz evangélica nas pesquisas do IBGE, é composta por trabalhadores que sofrem na mão do Estado capitalista neoliberal, e que neste momento encontra-se, em grande parte, desempregada, ou com perda de poder aquisitivo, sem saneamento básico ou tendo nenhum lugar para morar, sem acesso à saúde e educação de qualidade, parecendo que seu único direito ainda presente é o de ter fé.

Desde que fui convidada a me retirar da Igreja do Evangelho Quadrangular, devido ao meu posicionamento político, tenho me questionado de como os movimentos revolucionários de esquerda podem estabelecer um canal de diálogo com essa grande população de trabalhadores evangélicos, que é esmagada pelo sistema econômico, político e também religioso. Vejo que o trabalho de base é o único caminho possível, ou seja, é fundamental a nossa presença constante no cotidiano da nossa classe trabalhadora, nos bairros, nas associações e também nas igrejas. Muitos de nós, evangélicos de esquerda, abandonamos estes espaços, pois fomos coagidos a nos retirar e saímos sem lutar. Mas não podemos esquecer que ainda temos nossa capacidade argumentativa, nossa força religiosa e política, para dialogar e construir com nossos irmãos uma saída para este sistema que nos rouba tudo, até mesmo a nossa fé.

Só conhecendo com mais profundidade as igrejas evangélicas, seremos capazes de estabelecer um diálogo franco, que deve ser crítico com a instituição, sem deixar de ser construtivo e respeitoso com a população religiosa. Não há revolução se deixarmos essa parte importante dos trabalhadores de fora dela. Portanto, a transformação nos cobra esse debate sincero, essa aproximação, e como disse uma vez uma camarada do Alicerce, “nosso objetivo nunca foi desmerecer a fé das pessoas’’, até porque a luta é feita da fé em um mundo melhor.