Por Daniel Emmanuel
A pergunta que estampa a abertura deste artigo é um dos grandes problemas a ser resolvido por aqueles, como eu, que defendem a atualidade da revolução brasileira. Já tratamos anteriormente da importância do partido para a ação revolucionária. Agora, na segunda parte do texto que trago à público, vamos abordar a relação entre o partido revolucionário e as massas, e toca em dois dos principais problemas que podem desviar ou neutralizar a ação revolucionária: o economicismo e o espontaneísmo.
Boa leitura.
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O partido e as massas
Temos criticado, de forma muito correta, que a grande maioria das organizações de esquerda não procuram fazer política para as massas. Sua ação política se limita, basicamente, aos debates e às disputas entre as forças no interior do PSOL, da CSP-Conlutas, de uma infinidade de fóruns e frentes que se proliferam por aí. Deste modo, a grande maioria dos trabalhadores e das pessoas que não frequentam esses círculos não são alcançadas. As atividades para fora, para as massas, acontecem apenas em momentos esporádicos, nas ações contra alguma medida do governo, por exemplo, ou então nos períodos eleitorais e por meio da atuação parlamentar, mas sempre nos limites da institucionalidade. Não existe uma ação revolucionária para as massas.
A este respeito, algumas organizações da esquerda têm travado, já há vários anos, uma polêmica que contrapõem defensores do partido de massas, de um lado, e do partido de vanguarda, de outro. Em síntese, os defensores do partido de massas corroboram da mesma crítica que nós temos feito quanto à inabilidade da esquerda em se dirigir às massas, e procuram reverter essa prática com políticas mais para fora, dirigidas ao movimento amplo. O problema é que todos os que procuraram seguir este caminho até agora, o fizeram rebaixando seus objetivos políticos ao nível geral de consciência das massas. Isso inevitavelmente tem os conduzido a um movimentismo estéril ou, pior, ao oportunismo parlamentar e sindical.
Por outro lado, os que sustentam a tese do partido de vanguarda apontam corretamente o erro que é o rebaixamento da organização política ao nível de consciência das massas, e sustentam, com acerto, a necessidade de se ter um partido sólido, com quadros disciplinados, totalmente dedicados aos objetivos da revolução, e com capacidade de análise e elaboração teórica e tática. Contudo, para preservar essa organização de quadros, acabam por se distanciar das massas, e terminam se tornando verdadeiras seitas sectárias.
“A experiência revolucionária e a habilidade de organização são coisas que se adquirem. É preciso apenas desenvolver em nós mesmos as qualidades necessárias! É preciso que tenhamos consciência de nossos defeitos, o que, no trabalho revolucionário, já é meio caminho para os corrigir.”
Lênin, Que Fazer?
Penso que o Alicerce está partindo de algumas premissas corretas para abordar este problema: defendemos tanto a necessidade da organização de quadros, capaz de elaborar política num plano superior, como também consideramos determinante desenvolvermos ações junto às massas, não apenas nos círculos militantes. A grande dificuldade é como chegar a uma síntese satisfatória frente a este dilema aparentemente insolúvel.
Para isso, me parece importante reconhecer que, até agora, praticamente todas as iniciativas para tentar resolver esta equação nas organizações de esquerda têm se concentrado tentar estabelecer formas de relações mais horizontais entre direção e base e adotar uma linguagem mais acessível às massas. Contudo, apesar de serem iniciativas importantes, receio que não conseguiremos resolver este problema com medidas fundamentalmente organizativas, criando canais de mediação e definindo espaços e formas para organização dos ativistas e dos militantes.
Isso porque a ação revolucionária junto às massas é uma questão essencialmente política, que pode ser resumida da seguinte forma: como faremos para defender um programa para a revolução socialista sem, ao mesmo tempo, nos convertermos em uma seita sectária e nem capitularmos ao nível de consciência das massas?
Responder a esta questão não é uma tarefa fácil, é verdade. Mas precisamos concentrar todos os nossos esforços de elaboração para respondê-la. Para começarmos a pensar desta questão, penso que inicialmente devemos nos debruçar sobre dois temas que interferem nesta elaboração: a relação do partido com as massas, e os problemas do economicismo e do espontaneismo.
A Relação do partido com as massas
Como já assinalamos anteriormente, o que nos leva a deixar de ser apenas ativistas no movimento e optar pela militância política é uma consciência, adquirida ao longo das lutas e do estudo mais aprofundado da situação, que os problemas imediatos que enfrentamos no dia a dia só podem ser resolvidos com a superação da ordem capitalista. E isto só é possível através de uma luta política sistemática pelo poder do Estado. A partir deste momento damos um salto de qualidade e passamos a nos diferenciar dos ativistas que permanecem restritos aos movimentos sociais, e mais ainda das massas em geral.
A militância política nos permite ver as lutas sociais, as reivindicações imediatas das massas, sob uma ótica distinta, imensamente mais ampla, como partes de uma luta geral contra o capitalismo. Contudo, as massas e a grande maioria dos ativistas se mantêm alheios a essa dimensão. Continuam restritos aos seus problemas imediatos, de forma até “egoísta” as vezes, tanto que chegamos a nos questionar se é realmente possível falar de socialismo e de revolução para o conjunto das massas heterogêneas e com um nível de consciência tão atrasado. A tendência diante deste problema tem sido a capitulação dos militantes ao nível de consciência das massas e o rebaixamento da ação do partido aos limites dos movimentos sociais.
Porém, devemos observar que a ação das massas e o impulso militante do partido surgem de premissas totalmente distintas. O que leva as massas a se moverem politicamente é seu senso coletivo de sobrevivência, são suas necessidades imediatas que, por alguma razão ou outra, não estão sendo atendidas. É um processo fundamentalmente inconsciente, espontâneo e irregular. Já o impulso militante do partido é feito de um material totalmente distinto. É a consciência da necessidade de superação do capitalismo o que nos move para a luta, inclusive a nossa participação nos movimentos sociais. Não buscamos ali resolver problemas imediatos apenas, mas alavancar uma luta maior, uma luta política contra um sistema econômico inteiro.
Esta observação nos leva a concluir que, ao contrário do que muitos afirmam, o partido se desenvolve paralelamente ao movimento de massas. O partido aparece como elemento consciente do movimento histórico, capaz de formular análise e sínteses, e de apontar alternativas para além da ordem capitalista. As massas são o elemento inconsciente deste processo, a força bruta capaz de fazer a roda da história girar, capaz de realizar revoluções, mas não de concebê-la.
Assim, nenhum programa socialista para a revolução, que depende de um profundo conhecimento científico da sociedade, poderá ser formulado diretamente pelo movimento de massas. Este programa só poderá ser formulado pelo partido, que deve considerar seriamente as reivindicações imediatas das massas, mas também sua origem, a relação com outros problemas na sociedade e as tarefas do processo histórico. Enfim, a elaboração do programa socialista deve ser feita a partir de uma visão totalizante que só é possível no âmbito do partido revolucionário, cuja ação deve se concentrar na implantação deste programa no movimento de massas.
Precisamente neste sentido já escrevia Kautsky, um dos principais teóricos da socialdemocracia alemã e internacional no início do século XX:
(…) o socialismo e a luta de classe surgem paralelamente e um não engendra o outro: surgem de premissas diferentes. A consciência socialista de hoje não pode surgir senão de um profundo conhecimento científico. (…) Assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora. (…) o antigo programa de Heinfeld dizia, muito justamente, que a tarefa da socialdemocracia é introduzir no proletariado a consciência de sua situação e a consciência de sua missão. Não seria necessário fazê-lo se essa consciência emanasse naturalmente da luta de classe.[1]
Como vemos, a geração de revolucionários que nos antecedeu já tinha consciência da relação entre o partido e as massas, elemento consciente e inconsciente do processo histórico, respectivamente. Infelizmente as organizações e os militantes hoje em dia ainda têm muita dificuldade de compreender esta relação, o que tem levado a reproduzirem, na sua ação política, simplesmente as reivindicações imediatas das massas, prática que conduz apenas ao movimentismo estéril, ao economicismo ou, pior ainda, ao oportunismo parlamentar.
Devemos desviar deste caminho. Por mais difícil e desafiador que seja, devemos procurar demonstrar para as massas a real situação em que vivem, que os problemas imediatos que enfrentam têm suas raízes no modo de produção capitalista, e que é necessário lutar para superá-lo. Porém, devemos fazer isso de modo que as massas possam compreender, de forma didática e pedagógica, partindo de sua realidade e do seu nível de consciência, mas sem nos limitar a ele. Se não fizermos isso, cometeremos os mesmos erros praticados até então.
Isso nos conduz ao problema da direção política das massas. Ao buscar inserir o programa socialista no seio da luta de classes o partido está, na verdade, se apresentando como direção política para a sociedade. É obvio que se apresentar como direção é muito diferente de ser direção. Mas o primeiro é condição essencial para o segundo. Neste aspecto temos de reconhecer que a ação das massas independe da intervenção do partido, ela simplesmente ocorre, de forma espontânea, impulsionada pelas próprias contradições do capitalismo, dos fatores objetivos e materiais que regulam a vida social e coordenada pelos ativistas que surgem neste processo. Porém, a transformação desta energia em movimento revolucionário, capaz de superar a ordem capitalista, depende do entrelaçamento entre o partido e as massas.
Então, para que o partido possa se tornar direção do movimento de massas, é necessário que se cumpram dois requisitos: primeiro que o partido proponha soluções concretas para os problemas das massas e aponte saídas para a luta política para além dos limites do capitalismo, isto é, que se apresente como direção. Segundo que as massas em movimento vejam o programa proposto pelo partido e decida tomá-lo como seu, ou seja, que se ponha em luta por aquele programa. Em suma, é necessário que, em dado momento histórico, haja um entrelaçamento entre o elemento consciente (partido) e inconsciente (massas).
Contudo, esse entrelaçamento não pode ocorrer a qualquer momento. É impossível imaginá-lo num período em que o capitalismo consegue prover uma condição de vida minimamente aceitável para os trabalhadores, por exemplo. O entrelaçamento entre partido e movimento de massas só é possível em momentos elevados da luta de classes, nos momentos mais agudos de crise e contradições do capitalismo. Só então se criam as condições objetivas para que o partido se torne direção do movimento de massas. Trotsky descreveu este processo de forma magistral:
O marxismo pode ser considerado como a expressão consciente de um processo histórico inconsciente. Porém, o processo “inconsciente”, no sentido histórico-filosófico e não psicológico, somente coincide com sua expressão consciente nos seus picos mais elevados, quando a massa, levantada pelos seus impulsos elementares, força as portas da rotina social e garante o cumprimento das mais profundas necessidades da evolução histórica. A mais elevada consciência teórica que se tem da época se funde, nestes momentos, com a ação direta das camadas mais profundas das massas oprimidas mais distantes de qualquer teoria. A fusão criadora do consciente com o inconsciente constitui o que se chama, habitualmente, de inspiração. A revolução é o momento de inspiração exaltada na história.[2]
É evidente que não há garantias de que, quando chegarem os momentos mais agudos da luta de classes, as massas irão afluir automaticamente para o partido. É uma disputa, na qual jogam diversos elementos. Cabe ao partido fazer a sua parte, e se preparar da melhor forma possível para a batalha. Isso implica em elaborar e apresentar o programa socialista para a revolução da forma mais clara e precisa possível, desenvolver uma boa propaganda e agitação permanente perante as massas, se apresentar como direção para a sociedade. Se seguimos este caminho, teremos meio caminho já andado. Mas, nesta estrada, devemos estar atentos para alguns riscos que devemos superar. Me refiro aos problemas do economicismo e do espontaneísmo das massas.
O problema do economicismo e do espontaneísmo das massas
O economicismo é a corrente que prioriza, ou faz seu único cavalo de batalha, as lutas econômicas, isto é, as mais concretas das massas (greves, campanhas salariais, reivindicações de todo tipo). Esta concepção parte da crítica de que as grandes questões políticas estão distantes da realidade das massas trabalhadoras, e que o partido deve se ocupar, centralmente, dessas reivindicações mais prosaicas. Na verdade, é uma capitulação para o senso comum, para o nível de consciência das massas que, a priori, é burguês (“a consciência dominante é sempre a consciência da classe dominante” como afirmou Marx).
Esta capitulação ao senso comum faz com que a ação do partido se limite aos estritos limites permitidos pelo capitalismo. A ação sindical, por exemplo, por mais aguda e combativa que seja, não é capaz de romper estes limites. Lênin combateu esse problema com veemência nos primórdios do movimento revolucionário russo. Polemizando contra as correntes economicistas, que priorizavam as denúncias da situação de penúria dos trabalhadores em face da atuação política no início do século XX, ele escreveu:
(…) As denúncias referiam-se, no fundo, somente às relações de operários de uma determinada profissão com seus patrões, e não tiveram outro resultado senão o de ensinar àqueles que vendiam sua força de trabalho, a venderem esta “mercadoria” de forma mais vantajosa, e a lutar contra o comprador no terreno de uma transação puramente comercial. Essas denúncias (na condição de serem convenientemente utilizadas pela organização dos revolucionários) podiam servir de ponto de partida e de elemento constitutivo da ação socialdemocrata; mas também podiam (e até deviam, quando se inclinava diante da espontaneidade) conduzir à luta “exclusivamente profissional” e a um movimento operário, não socialdemocrata. A socialdemocracia dirige a luta de classe, não apenas para obter condições mais vantajosas na venda da força de trabalho, mas, também, pela abolição da ordem social que obriga os não possuidores a se venderem aos ricos. (…) Consequentemente, portanto, os sociais-democratas não podem limitar-se à luta econômica, mas, também não podem admitir que a organização das denúncias econômicas constitua sua atividade mais definida. Devemos empreender ativamente a educação política da classe operária, trabalhar para desenvolver sua consciência política.[3]
Aqui fica claro que Lênin não desprezava as lutas econômicas ou específicas de trabalhadores contra seus patrões no âmbito das relações de trabalho. Porém, ele tinha consciência de que a ação do partido não poderia se limitar só a esse terreno, que apenas conseguia fazer com que os trabalhadores vendessem sua força de trabalho em condições mais vantajosas, como comentou. A partir desta posição, definia que o objetivo do partido é coordenar a luta ampla, de todos os trabalhadores, para superação das formas de trabalho assalariado. Neste contexto, o partido deveria, sim, partir destas denúncias e destas lutas cotidianas, mas não se deter aí. Sua função seria empreender a educação das massas para a luta política.
A ação econômica, sindical (no sentido amplo) dos trabalhadores, o que inclui as denúncias das suas condições de vida citada por Lenin, é parte da formação da sua consciência de classe. Seu despertar político, digamos assim. Conforme Marx descreveu:
As condições econômicas tinham primeiramente transformado a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum de interesses comuns. Assim, essa massa já constitui uma classe em relação ao capital, mas não para ela mesma. Na luta da qual assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, constitui-se em classe por si própria. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe. A luta, porém, entre classe e classe é uma luta política.[4]
Por isso este processo não pode ser desprezado pelo partido. Mas, como vimos anteriormente, a luta de classes, por si mesma, não pode produzir a consciência necessária para a superação da ordem capitalista. É necessário que o partido atue sistematicamente, educando as massas, procurando demonstrar a sua tarefa histórica, enfim, se apresentando como direção para o movimento dos trabalhadores. E isso vale para todas as frentes que atuamos. Não podemos nos limitar a reproduzir as reivindicações imediatas do movimento, temos de partir delas, mas combiná-las com as palavras de ordem mais elevadas da política revolucionária.
Se, no âmbito do economicismo, o risco é que a ação do partido fique limitada aos marcos do sistema capitalista, e obviamente nenhuma política revolucionária pode sair daí, no que concerne ao espontaneísmo das massas o risco é muito maior. O fundo do problema é basicamente o mesmo: a capitulação do partido ao nível de consciência das massas. Mas os resultados são totalmente diferentes.
Este problema se colocou para nós basicamente nos processos de junho de 2013. Pela primeira vez muitos de nós pode presenciar a ação multitudinária das massas, desencadeada de forma praticamente espontânea, sem direção política ou ação coordenada. As reivindicações, como não podia deixar de ser, foram difusas, imprecisas, caóticas. Pediam de tudo, questionavam tudo. Mas é evidente que deste movimento espontâneo não pode resultar nenhum programa, nenhuma saída concreta para a crise. O vazio de direção não perdura por muito tempo, eles tendem a ser instrumentalizados por correntes oportunistas que se apresentam como direção, ou coisa muito pior. O espontaneísmo das massas, se não superado pelos revolucionários, tende a desembocar em saídas burguesas. Ao comentar sobre essa questão, Lenin escreveu:
(…) Fala-se de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário resulta justamente na subordinação à ideologia burguesa, efetua-se justamente segundo o programa do ‘Credo’, pois o movimento operário espontâneo é o sindicalismo (…) o sindicalismo é justamente a escravidão ideológica dos operários pela burguesia. Por isso, nossa tarefa, a da socialdemocracia, é combater a espontaneidade, desviar o movimento operário dessa tendência espontânea que apresenta o sindicalismo, de se refugiar sob as asas da burguesia, e atraí-lo para a socialdemocracia revolucionária.[5]
Lenin considerava o espontaneísmo das massas uma etapa necessária para a tomada de consciência dos trabalhadores. No entanto, ao perdurar o espontaneísmo sem que se eleve em luta política sob uma direção revolucionária, só conseguia levar as massas à organização sindical. Essa organização sindical (economicista por sua natureza) é o limite, a tutela, que o capitalismo impõe ao movimento dos trabalhadores, como afirma Lenin. A tarefa do partido revolucionário portanto é combater o espontaneísmo, e procurar elevar a luta das massas em uma luta política contra o capitalismo.
Mas não é apenas ao sindicalismo e às direções oportunistas que pode levar o espontaneísmo das massas. Ao abordar a situação das lutas que antecederam a Guerra Civil Espanhola, Trotsky salienta um perigo muito maior:
Em realidade, apesar da imensa extensão da luta, os fatores subjetivos, como partido, organização de massas e palavras de ordem encontram-se muito atrasados em relação às tarefas do movimento. E esse atraso representa atualmente o perigo mais grave.
O desenvolvimento simiespontâneo das greves, que conduzem ao sacrifício e à derrota ou que acabam sem resultados, é uma das etapas inevitáveis da revolução: é o período do despertar das massas, de sua mobilização e de sua entrada na luta. Não é a elite dos operários que participa no movimento, mas sim toda a massa operária. Entram em greve não somente os operários das fábricas, mas também os artesãos, os motoristas, os padeiros, os operários da construção, os operários dos trabalhos de irrigação e, por fim, os operários agrícolas. Os veteranos exercitam seus músculos, os novos recrutas aprendem. Por meio destas greves, a classe começa a se ver como tal.
No entanto, o que constitui na etapa atual, a força do movimento, sua espontaneidade, pode se converter amanhã em sua debilidade. Admitir que o movimento pode continuar abandonado à sua própria sorte, sem programa claro, sem direção, equivaleria admitir uma perspectiva sem esperança. Trata-se nada menos do que da conquista do poder. Sequer as greves mais impetuosas resolvem esse problema, sobretudo se estiverem dispersas. Se o proletariado não perceber, em alguns meses, no processo da luta, que suas tarefas, seus métodos, clarificam-se e que suas fileiras se unem e se fortalecem, então inevitavelmente se iniciará a desmoralização em seu próprio seio. Amplas camadas despertadas pela primeira vez pelo movimento atual voltarão a cair na passividade. Na medida em que o solo começar a desabar sob seus pés, a vanguarda gerará um estado de espírito favorável à ação de grupos isolados e ao aventureirismo em geral. Nem o campesinato, nem as camadas pobres das cidades encontrarão nesse caso uma direção prestigiada. As esperanças suscitadas se converterão rapidamente em decepção e em exasperação. (…) Nas condições que indicamos anteriormente, ou seja, passividade e expectativa do partido revolucionário, espontaneidade do movimento de massas, a Espanha poderia se converter no terreno de um fascismo autêntico. A grande burguesia ganharia as massas pequeno-burguesas desamparadas, decepcionadas e desesperadas, para dirigir sua exasperação contra o proletariado. (…).[6]
O texto de Trotsky é mais didático, e permite ver a sucessão de eventos possíveis caso o espontaneísmo das massas se prolongar. Contudo, a conclusão é a mesma apontada por Lenin: o partido deve combater sistematicamente o espontaneísmo, se apresentando como direção política para o movimento. Para isso não pode desviar um milímetro do conteúdo político do programa para a revolução, desenvolvendo cotidianamente a educação das massas sobre as tarefas históricas que estão colocadas diante de si. É justamente a questão do programa e da tática como ele deve ser apresentado às massas o que quero debater a seguir.
[1] KAUTSKY, K. apud LENIN, V. Que Fazer?. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 31.
[2] TROTSKY, L. Minha Vida. São Paulo: Usina Editorial, 2017. p. 383-4.
[3] LENIN, V. Que Fazer?. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 45.
[4] MARX, K. Miséria da Filosofia. 2ª ad. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2008. p. 190.
[5] LENIN, V. Que Fazer?. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 32.
[6] TROTSKY, L. A Revolução Espanhola e a tarefa dos comunistas. In A Teoria da Revolução Permanente. São Paulo: Sundermann, 2011. p. 341-3.