Por Daniel Emmanuel
As questões do partido, da sua relação com as massas e do programa são temas de enorme relevância para aqueles que, como eu, defendem a transformação revolucionária da sociedade brasileira. O presente artigo tem por objetivo estabelecer algumas premissas iniciais para discussão destes temas, apoiando-se num diagnóstico preliminar das dificuldades e dos limites das organizações de esquerda no país e nas formulações das gerações de revolucionários que nos antecederam.
O texto foi escrito em início de 2019, como parte de um debate interno no Coletivo Alicerce a respeito dos grandes desafios que se colocavam – e ainda se colocam – diante de nós. Porém, como este debate transcende as fronteiras do nosso coletivo, e agora ganha novo impulso a partir da reabilitação do lulismo e das pressões que isso tem gerado no PSOL e no conjunto da esquerda brasileira, considerei pertinente resgatar o texto e trazê-lo a público.
Por se tratar de um artigo mais longo, optei por dividi-lo em três partes para a publicação no blog, respeitando a divisão original dos títulos. As outras duas partes deverão ser publicadas nas próximas semanas.
Boa leitura.
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O Partido
Quero iniciar este debate com uma pergunta bastante elementar, mas cuja resposta não é tão simples assim: por que nós militamos em uma organização política? É interessante notar que a grande maioria de nós ingressamos na militância política em decorrência de outras lutas sociais que realizamos, seja no movimento estudantil, sindical, popular, ou contra opressões. Todas essas lutas sociais possuem suas formas características de organização, tais como grêmio estudantil, DA, DCE, sindicato, oposições, associações, coletivos etc. Portanto, não há nenhuma necessidade de que alguém venha a militar em uma organização política para participar da luta sindical, por exemplo. A maioria dos ativistas que encontramos no movimento não o fazem, inclusive, e nem por isso deixam de ser bons ativistas.
Alguém poderia dizer que esses movimentos sociais isolados são insuficientes para responder às necessidades mais amplas da luta, e que é necessário criar canais e instrumentos de unidade entre todos esses setores. Esta necessidade de unificar os processos de luta é muito verdadeira, afinal, várias categorias de trabalhadores lutando juntas, sob uma bandeira única, são muito mais fortes do que se estivessem lutando isoladas. Mas para isso também há diversas organizações que desempenham essa finalidade no movimento, como a UNE, as centrais sindicais, uma infinidade de frentes e fóruns de todos os tipos. Portanto, também não é preciso que exista uma organização política para possibilitar essa unidade.
Na verdade, quando algum ativista resolve ingressar na militância política é porque houve um salto de qualidade no seu nível de consciência. Essa pessoa passou a ver, por algum motivo, que o problema do desemprego, do salário baixo, do sucateamento das escolas, das opressões etc., são muito maiores e mais profundos. Começou a perceber que todos esses problemas têm a mesma raiz; que todos eles são produzidos ou reproduzidos pelo capitalismo. Este salto de qualidade leva conclusão de que a luta social é insuficiente para resolver os problemas mais imediatos, porque, mesmo que essas lutas sejam vitoriosas, os problemas serão apenas temporariamente amenizados, e inevitavelmente voltarão a crescer se o sistema que os alimenta não for modificado. Assim, compreendem que é necessário continuar a luta em outro patamar, um patamar político.
Então, tentando responder à pergunta que fiz no início, podemos dizer que nós militamos em uma organização política porque compreendemos que é necessária uma luta mais ampla, uma luta política contra o capitalismo, que é a raiz de todos os problemas mais imediatos que procuramos enfrentar nas lutas sociais que participamos. É claro que nem todos os ativistas chegam a esse nível de consciência, e isso é o que os diferencia dos militantes políticos, como veremos melhor mais adiante quando abordarmos o problema da relação entre o partido e as massas. Mas, na nossa ação política, procuramos sempre fazer com que o maior número de pessoas dê este salto de qualidade, e que também comecem a se organizar politicamente.
“Os revolucionários, afinal de contas, são feitos da mesma matéria social que os outros homens. Devem, entretanto, possuir certas particularidades pessoais destacadas que permitam ao processo histórico distingui-los dos outros e agrupá-los separadamente. A vida comum, o trabalho teórico, a luta sob uma bandeira, a disciplina coletiva e a força adquirida sob o fogo dos perigos formam, pouco a pouco, o revolucionário.”
Leon Trotsky, Minha Vida
Para travar essa luta política, em toda a amplitude e profundidade que ela exige, é necessária uma organização distinta daquelas que encontramos no movimento. É necessário um partido político. E aqui não me refiro ao sentido jurídico do termo, mas ao sentido político. O partido é um tipo especial e superior de organização que, independentemente de ter ou não personalidade jurídica e registro eleitoral, aglutina os militantes políticos em torno de princípios sólidos, de práticas de convivência comuns e, principalmente de um programa político que procura responder aos principais problemas da sociedade.
Neste sentido, é evidente que o objetivo do partido não pode ser a organização das lutas sociais, isso porque, como já vimos anteriormente, já existem várias organizações para este fim no movimento. É claro que o partido deve ocupar estes espaços de luta, porém o seu objetivo é muito mais amplo. Ao partido cabe a disputa do poder do Estado para, através dele, reorganizar a sociedade conforme os interesses da classe social que este partido representa. A este respeito, Trotsky escreveu:
Qualquer partido político que mereça esse nome trabalha para conquistar o poder governamental, a fim de pôr o Estado a serviço da classe cujos interesses representa. A socialdemocracia, como partido do proletariado, aspira naturalmente à dominação política da classe operária. [1]
Um partido político que representa os interesses dos trabalhadores e que compreende que os principais problemas enfrentados por eles não podem ser resolvidos nos marcos do sistema capitalista, deve sempre almejar a conquista do poder do Estado através da ação revolucionária com vistas a superar o capitalismo, e deve sempre procurar convencer aos trabalhadores e as demais classes exploradas dessa necessidade. Nisto consiste a razão de ser de uma organização revolucionária. Esse objetivo geral deve balizar todas as ações políticas do partido e dos seus militantes, desde as mais simples, como uma panfletagem, até as mais elevadas, como uma insurreição.
Observem bem que aqui não mencionei as questões de organização e funcionamento interno do partido. É claro que essas questões cumprem um papel importante para viabilizar a estrutura e o debate interno entre as várias posições e opiniões que inevitavelmente devem conviver na organização. Porém elas possuem um caráter secundário diante do objetivo político. O que realmente garante a unidade de um partido é o pleno acordo em torno desses objetivos políticos e das bases fundamentais do programa. Não há medidas ou acordos burocráticos e de organização que possam substituir isso. A política deve ser o início, o meio e o fim da unidade partidária.
O problema do partido hoje
Um partido político é um instrumento fundamental para enfrentarmos as batalhas que se colocam para nós, nesta conjuntura de crise aguda do sistema capitalista, onde a única saída para a burguesia resolver o problema da queda da taxa de lucros é ampliar ainda mais a exploração sobre a classe trabalhadora. Acredito que a história está nos colocando diante de uma situação em que as condições objetivas (isto é, materiais, econômicas e políticas) para a superação do capitalismo estão cada vez mais na ordem do dia. Porém as condições subjetivas (o nível de consciência das massas) estão ainda muito atrasadas em relação à esta tarefa. A existência de um partido é uma condição necessária para fazer frente a este problema, contudo temos de reconhecer que não temos essa ferramenta à nossa disposição.
Embora seja um partido no sentido jurídico da palavra (por possuir personalidade jurídica e registro eleitoral), o PSOL claramente não é a organização que descrevemos acima. Em sua constituição se assemelha muito mais a uma frente eleitoral, que aglutina uma infinidade de correntes com princípios e objetivos diversos, do que um partido propriamente dito. Esta composição tem a ver com o processo de fundação do PSOL, quando aconteciam as primeiras rupturas com o PT no início do governo Lula. Naquele momento, o grande objetivo estava em criar uma organização que impedisse a dispersão dessas forças e criasse um polo de oposição à esquerda aos governos petistas. O estatuto e o programa de fundação do PSOL expressam bem esse objetivo.
O PSOL foi relativamente bem-sucedido neste objetivo inicial. Além de ser referência para maioria das correntes e figuras que deixavam o petismo, o partido se manteve relativamente independente em relação ao governo. Porém, o acerto se manteve nestes limites. Em todos os seus anos de existência o PSOL não conseguiu avançar um milímetro na construção de uma alternativa política frente ao programa democrático e popular, em boa medida porque a maioria das correntes e das figuras políticas, embora tenham saído do PT, não romperam com o programa petista [2].
Esta deficiência programática conduz a um outro problema, que se expressam na forma de atuação política das correntes que estão no PSOL e de outras organizações políticas da esquerda brasileira. Aqui me refiro ao que Álvaro Bianchi, em uma plenária organizada pelo Alicerce em 2017, chamou de possibilismo parlamentar e corporativismo sindical.
O possibilismo parlamentar nada mais é do que a crença de que a ação política só pode ser realizada no período eleitoral ou através do parlamento. Ela parte de uma visão de que, como o movimento de massas está sempre atrasado no seu nível de consciência e ação, a única ação possível são a tentativa de aprovação de reformas, projetos pontuais e o denuncismo na tribuna do parlamento e na campanha eleitoral. No fim, essas ações acabam se tornando um fim em si mesmo, de modo que toda a audiência que conseguem alcançar, todas as indignações que conseguem provocar, são canalizadas para as eleições e para a ação parlamentar. No fim, estas organizações se cristalizam como uma oposição política nos marcos do regime democrático burguês, e não raramente passam a atuar como defensores deste regime nos momentos mais agudos da luta de classes – afinal, a ação unicamente eleitoral e parlamentar requer uma normalidade democrática.
Enquanto o possibilismo parlamentar se resume a realização da política apenas no viés institucional, o corporativismo sindical consiste, na prática, na negação da ação política mais ampla. Na verdade, esse corporativismo não se resume apenas ao terreno sindical propriamente dito, ele se estende num espectro mais amplo, abrangendo todas as lutas de caráter reivindicatório, seja no movimento estudantil, popular ou de minorias. Embora distinto do possibilismo parlamentar, o efeito que o corporativismo sindical exerce sobre o movimento é praticamente o mesmo: limita todas as lutas e indignações ao que é possível conquistar nos marcos do regime democrático burguês.
Infelizmente a ação das organizações de esquerda no brasil se resumem basicamente a esses dois modelos. Temos as correntes que se jogam para ação política parlamentar e as que limitam a sua atuação no âmbito sindical, onde, nos momentos de refluxo das lutas econômicas, primam as disputas por espaço nos aparatos muitas vezes esvaziados. Eventualmente o corporativismo sindical serve de antessala para o possibilismo parlamentar, com a mobilização das bases das categorias e dos movimentos sociais para a eleição de parlamentares. Contudo, isso não significa uma mudança de qualidade na luta política, pois a atuação parlamentar continuará restrita aos limites que o regime democrático burguês permitir.
É evidente que não nego a necessidade participarmos da luta no terreno sindical ou parlamentar. Porém, a ocupação desses espaços de luta não devem ser um fim em si mesmo, mas estar subordinada à uma estratégia de disputa revolucionária do poder do Estado e superação do sistema capitalista. É justamente isso que pode dar um caráter revolucionário e socialista à ação parlamentar e sindical do partido. Portanto, tanto o possibilismo parlamentar quanto o corporativismo sindical — que são heranças da tática de acúmulo de forças delineadas no programa democrático e popular petista — devem ser energicamente combatidos no interior do movimento. Sem derrotarmos essas práticas, dificilmente teremos condições de construção de um partido que mereça este nome.
É claro que nossa pequena organização não tem condições de tornar, por si mesma, num partido. A formação de um partido, nos moldes que expus aqui, só poderá ocorrer como o coroamento de um amplo processo de debate político e de reorganização das forças de esquerda que se dispuserem seriamente a lutar pela superação da ordem burguesa. Não existe atalho ou acordos administrativos que possam substituir este caminho. Porém, a necessidade de termos um partido político deve estar claro para nós, e nossa organização deve estar empenhada nesta tarefa em todas as frentes que atuamos, seja no movimento, seja nos espaços institucionais em que participamos. A reorganização da esquerda que busca a derrubada do capitalismo e a preparação das massas para esta revolução só poderá se dar através de um partido revolucionário.
Para avançarmos neste debate em relação ao partido, há dois problemas essenciais que quero tratar mais detidamente: a relação entre o partido e as massas, e o programa para a revolução. Essas questões, juntamente com o objetivo do partido que tratamos acima, são os fundamentos políticos sobre o qual deverá se construir a unidade partidária. Vou tratar cada um deles nos capítulos que seguem, com o auxílio da experiência histórica das gerações de revolucionários que nos antecederam.
[1] TROTSKY, L. Balanço e Perspectivas. In A teoria da Revolução Permanente. São Paulo: Sundermann, 2011. p. 71-2.
[2] A posição predominante no PSOL é que Lula traiu o programa democrático e popular. Isto é, deixou de aplicar os seus preceitos por conta de uma opção política. A interpretação que temos defendido, ao contrário, é de que o programa democrático e popular é impraticável no atual grau de desenvolvimento do capitalismo, o que conduz a socialdemocracia no governo, invariavelmente, a implementar o programa liberal, ainda que com mediações.