Sociedade

Uma breve análise crítica do tempo/máquina

O objeto/mercadoria fetichizada que engendra o lucro e possibilita o gozo do capitalista, agora transmuta-se consumindo o trabalhador/consumidor que o compra para seu lazer/ trabalho, para seu desenvolvimento e motivação em alta performance. Afinal de contas tempo é dinheiro. Não é?

Por Paulo Reguly[1]

Um dos ensinamentos de Marx, em sua estupenda análise crítica da sociedade capitalista, é como o corpo do trabalhador é disciplinado ao tempo e movimento da máquina durante a Revolução Industrial. Corpo formatado que é o esteio da acumulação capitalista. Corpo explorado que se torna elemento chave no processo de extração da mais-valia, logo, o resultado desse trabalho alienante é um corpo fatigado pelo ritmo frenético da máquina. Esse contexto foi maravilhosamente ilustrado por Chaplin em seu filme “Tempos Modernos”. A Revolução Industrial vulgariza o tempo da máquina, que dita, a partir de agora o tempo da vida.

Tempos modernos que lançam, portanto, sobre a humanidade o paradigma da máquina como instrumento de uma ilusória e pretensa transformação evolutiva da sociedade e da cultura. Positivada pelo discurso científico do século XIX e XX, tal paradigma se alastra na carona dos desenvolvimentos técnicos informacionais e de transporte – da caravela ao trem bala, da carta de Pero Vaz ao tweet[2] – mudando a forma como se estabelece o laço social entre os sujeitos.

Nesse sentido, o corpo humano comparado à máquina, a mente comparada aos mais recentes softwares acompanhados do desenvolvimento da IA (Inteligência Artificial) permite a percepção adestrada ao discurso capitalista que o trabalhador não é mais explorado, mas “colabora”. Não há mais no discurso comum, corrente nos diálogos do dia a dia, o termo relação trabalhista, por exemplo, hoje se diz “parceria”. Não existe mais transmissão do conhecimento – realizada, sempre, a partir do contato entre uma pessoa que fala do que sabe e um outro que escuta para, depois, saber[3] – hoje existe a “mediação entre a informação e o indivíduo”. E qual o problema disso? Ora, a mediação entre a informação pode ser realizada por qualquer coisa, basta dar um google no smartphone, no tablete, no computador ou no professor mais próximo de você, que daqui a pouco poderá chamar por um aplicativo qualquer que poderá baixar da nuvem.

Expressões como “engenharia do corpo”, “desenvolvimento de alta performance”, além da proliferação do mercado editorial das dicas com os mais variados best-sellers do desenvolvimento pessoal, associados ao discurso e métodos aplicados pela propaganda e marketing possibilitam a construção de uma fantasia de que tudo é objeto de consumo e gozo, de acesso rápido e fácil. Inclusive a outra pessoa que está ao seu lado. Ou mesmo o saber, transfigurado em mero objeto/mercadoria usada, abusada para sua satisfação e gozo.

A exigência de desenvolvimento pleno do indivíduo cujo objetivo é a maximização de seus resultados acompanhados dos processos discursivos que se estabelecem através das tecnologias de informação mudaram de maneira decisiva a percepção temporal dos sujeitos e a maneira como se relacionam. Quem ganhou com isso? Sim, os capitalistas! Mas como isso acontece?

Espera-se que as pessoas respondam com a mesma velocidade com que as informações são transmitidas pelas mais diferentes tecnologias ao redor do mundo. Esse tempo de resposta, cada vez mais rápido, faz parte do cotidiano do trabalhador, seja no ambiente profissional ou no seu lazer. Visualizar uma mensagem no WhatsApp é uma ordem de resposta imediata. Visualizar, expressão que a poucos anos sequer existia. Expressão que traz em si a insígnia da transmutação temporal. Do tempo de ver, compreender/ analisar e, então, concluir foi amputado o tempo de compreender/analisar. A resposta imediata não suporta a espera necessária para a elaboração mental do que foi registrado pelos sentidos. Não vivemos hoje epidemias de transtornos de ansiedade dos mais variados tipos, para todos os gostos e de todas as cores?

A resposta imediata não suporta mais de 280 caracteres de um tweet (antes de 2017 eram 140 caracteres permitidos para a transmissão da mensagem na rede social Twitter). O texto de leitura mais demorada, do romance ao artigo jornalístico é percebido como “perda de tempo”. “Tem muito texto isso aí”, não é uma expressão normalmente escutada? As imagens, mais do que o texto que exige decifração do seu código (alfabeto e gramática), se tornaram o principal meio de comunicação. As imagens e vídeos curtos passam pela tela dos smartphones numa velocidade incrível, da mesma forma como são consumidas pelos “usuários”, podem muito bem ilustrar essa situação.

A confusão entre público e privado, entre trabalho e lazer característico da fase atual da sociedade capitalista, representa perfeitamente a alienação do sujeito ao tempo/máquina. Se no século XIX o corpo era submetido à máquina/ ferramenta enquanto estavam na fábrica, ao saírem de lá poderiam se dedicar a compreensão de sua realidade, inclusive. O surgimento e desenvolvimento do movimento de trabalhadores não se dá de qualquer maneira, como sabemos. Hoje, o corpo, a mente e a alma do trabalhador estão submetidas ao tempo/máquina que lhe explora em nome do capitalista. Seu telefone toca, e-mails chegam, mensagens demandam respostas cada vez mais urgentes. Quando é tempo de descanso? Quando é tempo de trabalho? Quando há tempo?

O objeto/mercadoria fetichizada que engendra o lucro e possibilita o gozo do capitalista, agora transmuta-se consumindo o trabalhador/consumidor que o compra para seu lazer/ trabalho, para seu desenvolvimento e motivação em alta performance. Afinal de contas tempo é dinheiro. Não é?

[1]Professor de História da rede pública municipal de Caxias do Sul.  

[2]Tweet – é o nome que se dá para as publicações na rede social Twitter.

[3]Saber – neste texto a expressão saber foi usada a partir do seu entendimento pela Psicanálise lacaniana que procura compreender o saber como a produção singular de um sujeito a partir da relação que estabelece com o outro. O saber é singular pois é construído por aquele que recebe o conhecimento.