Feminismo

Mulheres e as Relações de Trabalho

Repensar as relações de trabalho, as relações de produção e reprodução econômica, é uma atividade essencial no movimento feminista. Se situações como as relatadas nunca te chamaram a atenção, que a partir de hoje você possa refletir sobre, e que isso possa ocasionar incomodo e busca por revolução social.

Por Tainara Hanke

Como muitos sabem, sou- com muito orgulho, filha de uma merendeira de escola, que também era empregada doméstica e por anos teve dois e até três empregos, para poder dar conta de criar os filhos. Confesso que nem sempre tive este orgulho, principalmente na adolescência, onde por contradição eu acabava estudando com as filhas das “patroas” da minha mãe, e era realmente difícil encarar e transpor as relações de classe e trabalho entre as famílias.

Minha mãe, por volta de 1996, fazia uma faxina de meio período por 10 Reais, e muitas vezes suas “patroas” queriam pagar a ela com roupas usadas ou “penduravam” o dia de trabalho, explicitando a relação de subalternidade e de analogia a escravidão que ainda habita o inconsciente da sociedade acerca das trabalhadoras domésticas.

Como se seu trabalho fosse tão secundário, que sua remuneração também é vista como algo de segunda categoria e de menor importância. Quando as faxinas eram “penduradas” cabia a mim – então com 10 anos, a mando de minha mãe, ir realizar as cobranças. Das tantas histórias que lembro desta época duas não me saem da memória:

1º – Certa vez fui cobrar uma madame, minha mãe já tinha me dado a lista do mercado composta por papel higiênico, farinha de milho, óleo de soja e carne moída, estávamos em uma situação bem precária financeiramente, e estes itens eram de muita importância para nossa família. A madame me enxotou, ficando abismada com minha audácia em cobrá-la. Como se minha mãe não fosse digna de reclamar um direito que seu; o pagamento do seu trabalho, do seu suor. A madame ignorou que para minha mãe os 10 Reais devido significavam a diferença entre ter ou não almoço na mesa no dia seguinte.

2º – Minha mãe trabalhou durante anos para uma família tradicional em Lagoa Vermelha, que por sinal nunca pagou nenhum direito trabalhista a ela. Minha mãe fazia o almoço da família, ela só podia comer depois deles, e nunca sobrava carne para ela. Então certo dia, iludida pela percepção que não sobrava carne porque ela fazia pouca, minha mãe fritou 1 kg de bifes, mas, mesmo assim, não sobrou carne para ela.

Acho esta passagem tão simbólica, demonstra claramente o que a classe média, ou pequena burguesia, pensa sobre as pessoas pobres e como se porta com relação a pobreza. Esta casta de pessoas desumaniza os podres e os trabalhadores, e nega a estes as necessidades básicas humanas como a alimentação. Quando vemos uma família que não se preocupa, e por fim nega a necessidade alimentar da sua empregada doméstica, vemos que esta trabalhadora não é vista como um ser humano com sentimentos e necessidades inerentes a sua condição de indivíduo, é vista como objeto, como besta, ao qual é negado a humanidade e a própria capacidade de pensar e sentir.

O trabalho da minha mãe me proporcionou cursar uma universidade particular, e apenas estudar durante 03 anos. Sendo a primeira na minha família a ter nível superior. Então eu acabei virando “madame” e me vi no dilema: será que serei o oprimido que virará opressor, como Paulo Freire tanto falou? Em uma sociedade patriarcal, onde o cuidado doméstico e familiar é designado as mulheres, cultura essa ainda muito viva ainda na atualidade, as mulheres que ingressam no mercado de trabalho, seja formal e informal, de todo não são abdicadas das responsabilidades domésticas.

As mulheres, em grande maioria branca e de classe média, ao adentrarem no universo laboral, tiveram que contar com o apoio de mulheres pobres, em sua maioria negras, para realizarem suas tarefas de cuidado doméstico. Eu, como mulher trabalhadora, gozando de meu privilégio de classe e raça, também lanço mão de estabelecer uma relação de trabalho com outra mulher, para desempenhar o cuidado da minha casa.

Viver esta contradição me faz refletir muito, pois já estive do outro lado. Me sinto realmente incomodada em explorar outra mulher e fazê-la limpar literalmente a minha sujeira. Ao mesmo tempo que sei que o dinheiro das faxinas que minha mãe fazia colou comida no meu prato, custeou meus estudos, e me fez ter outra profissão menos precarizada. Penso que talvez este trabalho que estou ofertando a outra mulher também a ajude a ter alimento, casa, estudo aos seus filhos e até mesmo certa independência financeira.

Pensando em fazer mea-culpa, sempre limpo a casa antes da minha diarista vir. Procuro ter respeito por seu trabalho, e “humanizar” nossa relação – se é que isso é possível. Trouxe esta reflexão porque as relações de trabalho são muito complexas, em especial entre as mulheres, por isso que não há como discutirmos feminismo sem pensar em Interseccionalidade entre classe, raça e gênero. A mesma mulher oprimida por seu chefe no escritório pode oprimir sua empregada doméstica, e a mesma mulher explorada na fábrica, explora sua diarista, e assim se dão as relações de trabalho no sistema capitalista, baseado na relação oprimido e opressor.

Repensar as relações de trabalho, as relações de produção e reprodução econômica, é uma atividade essencial no movimento feminista. Se situações como as relatadas nunca te chamaram a atenção, que a partir de hoje você possa refletir sobre, e que isso possa ocasionar incomodo e busca por revolução social.