Por Daniel Emmanuel
O ano começou bastante movimentado no cenário político nacional. O previsível agravamento da pandemia, o colapso no sistema de saúde no Amazonas e as disputas pela presidência da Câmara e do Senado dividiram espaço com a retomada dos movimentos pelo impeachment Bolsonaro.
A novidade é que estes movimentos, que até então só contavam com apoio de partidos e organizações de oposição, agora ganharam reforço de figuras como Luciano Huck e João Amoedo, de movimentos como o MBL e Vem Pra Rua, além do respaldo de importantes órgãos de imprensa burguesa, como Estadão e Folha de São Paulo, que passaram a defender abertamente o impeachment em seus editoriais.
Mas, afinal, porque as correntes liberais, que até a pouco ajudavam a sustentar o governo Bolsonaro, ou no máximo mantinham uma postura de independência conivente em relação a ele, passaram agora a empunhar a bandeira do impeachment?
O desastre produzido pelo governo federal na gestão de saúde, em especial o atraso em constituir um plano nacional de vacinação, é, sem dúvida, um dos motivos. Isso porque um eficiente manejo da pandemia e a rápida superação da crise sanitária são – e com razão – apontada como os primeiros requisitos para que o país possa retornar a uma relativa normalidade e, assim, começar a reverter a paralisia da atividade econômica e a crise social.
Mas as razões vão muito além da irresponsabilidade do governo federal com a saúde. Os reiterados ataques feitos por Bolsonaro contra as instituições da democracia burguesa, combinado ao total absurdo que tem sido o seu governo em áreas chaves, ajudam a alimentar a ira dos liberais. Afinal, a gestão errática de Bolsonaro tem contribuído para diminuir a estabilidade e segurança institucional, requisitos tão necessários para os negócios da burguesia e o investimento lucrativo do capital.
Nesse aspecto, é emblemática a gestão de Ernesto Araújo no Itamarati, onde sua militância surreal contra o “globalismo” já colocou em risco diversos interesses vitais para a burguesia brasileira, como o comércio com a Europa e o Oriente Médio e, mais recentemente, o fornecimento de vacinas e insumos pela Índia e China. Aliás, se esses arroubos não forem sanados, os atritos agora tendem a se agudizar mais diante da eleição de Biden e a possível mudança na política externa nos EUA.
Mas o que definitivamente tornou o governo Bolsonaro uma espécie de pária para as correntes liberais é sua falta de empenho para fazer avançar o ajuste fiscal e as privatizações. O compromisso inicial em torno destes eixos, que são a base do programa liberal, junto com a nomeação de Paulo Guedes no super Ministério da Economia para capitanear esta pauta, foi o que selou o apoio, ou uma independência conivente, das correntes liberais ao governo. Porém, após a aprovação de uma reforma da previdência, o que se constatou foi a total paralisia do governo em relação aos planos de ajuste.
Desde então, as tentativas de Guedes para avançar na agenda liberal foram travadas pela sabotagem praticada por outras áreas do governo e, não raro, pelo próprio Bolsonaro. Contudo, para que se possa compreender essa atuação errática do governo e a sua falta de comprometimento com a agenda liberal, precisamos ir além das explicações mais superficiais, como a preocupação de Bolsonaro com a reeleição e a defesa dos interesses clientelistas de sua família.
Como temos afirmado, o governo Bolsonaro é produto de um movimento desesperado da pequena-burguesia e de setores marginais burguesia, que buscam sobreviver aos efeitos da crise econômica e política. Visto por este prisma, podemos entender que o negacionismo aparentemente irracional do governo diante da pandemia, na verdade atende a interesses concretos destes setores que definhariam caso fossem implementadas medidas sérias de isolamento social. Os disparates em relação à política ambiental e indígena, que beneficiam setores mais atrasados da agropecuária extensiva, são outro exemplo deste compromisso do bolsonarismo com as frações mais atrasadas e reacionárias da burguesia brasileira.
Assim, longe da unidade monolítica caracterizada por boa parte das correntes de esquerda, fica cada vez mais evidente que o governo Bolsonaro, na realidade, foi constituído sobre um consenso frágil entre representantes setores marginais da burguesia reacionária (dentre os quais o próprio Bolsonaro) algumas correntes liberais oriundas de fora do mainstream, e a tecnocracia da Lava Jato (que já foi apeada do governo).
Desde o início do governo as correntes liberais tentaram consolidar sua hegemonia neste consenso frágil através do controle do Ministério da Economia, que concentrou as principais áreas do governo, e da constituição de um bloco dirigente no parlamento sob a liderança de Rodrigo Maia. Porém, embora este arranjo tenha conseguido limitar algumas ações de Bolsonaro, em especial os ataques contra as instituições da democracia burguesa, ele ficou longe de garantir o avanço da agenda de reformas defendidas pelos liberais.
Agora, com o alinhamento de Bolsonaro com o chamado “centrão”, que culminou na eleição dos dois presidentes no Congresso Nacional, e alterou a composição do governo com a incorporação de representantes das oligarquias locais – nem sempre alinhados ao programa liberal – este objetivo pode ter ficado ainda mais longe. Foi justamente esta paralisia do governo e esta falta de compromisso em relação a agenda liberal, bem como o agravamento de outros problemas estruturais para os quais o governo não tem e nem quer ter resposta, que agudizou a percepção de alguns setores liberais de que é necessário tirar Bolsonaro do governo para avançarem com seu programa. Contudo, a adesão dos liberais à bandeira do impeachment não é sólida e nem unitária.
Isso se explica, primeiro, porque as condições objetivas para um impeachment não estão maduras na sociedade. Embora tenha aumentado o desgaste de Bolsonaro, ele ainda mantém considerável apoio na pequena-burguesia e nos setores marginais da burguesia, e as massas majoritariamente se dividem no apoio e na neutralidade diante do governo. Segundo porque a burguesia liberal ainda está longe de conseguir estabelecer um arranjo em torno de um projeto de governo, como ficou bastante claro no resultado das disputas pela direção do Congresso Nacional. Por fim, o impeachment só pode ocorrer num quadro de agravamento da instabilidade política e social, o que tardaria ainda mais a aplicação das políticas de ajuste.
Neste cenário, o mais provável é que as correntes liberais sigam tentando costurar uma pauta mínima de reformas tendo como prioridade, neste momento, a aprovação da PEC emergencial e uma lei orçamentária enxuta. Se tiverem sucesso tentarão evoluir para medidas como a aprovação da reforma administrativa e de uma minirreforma trabalhista através da carteira verde-amarela. É difícil que consigam avançar além disso, e ainda assim, certamente seremos testemunhas de grandes embates e confusões na cúpula do governo e do Congresso, visto que nem Bolsonaro e nem os chefes do centrão têm compromisso claro com as reformas liberais.
Assim, além de tentar avançar no que for possível com a agenda de reformas, as correntes liberais devem continuar a desenvolver uma ampla campanha de denúncia contra as barbaridades praticadas pelo bolsonarismo como parte de uma estratégia para construir uma alternativa de governo que possa fazer frente a Bolsonaro em 2022. A bandeira do impeachment na mão das correntes liberais será usada como parte desta estratégia, bem como para garantir uma localização tática, caso o agravamento das contradições sociais coloque a queda de Bolsonaro na ordem do dia antes das eleições.
Neste aspecto, os liberais assumem uma posição bastante semelhante a que vem sendo adotada pelo reformismo socialdemocrata (as direções PT, do PCdoB, de boa parte do PSOL). Após serem obrigados pelas bases – bastante radicalizadas pela narrativa do golpe fascista – a empunhar o Fora Bolsonaro, os chefes da velha burocracia conseguiram transformar esta bandeira num elemento de propaganda em favor de um bloco eleitoral “de esquerda” para 2022. As eleições municipais, no ano passado, já deram uma mostra de como esta tática deve funcionar.
Com isso, o reformismo socialdemocrata, inteiramente comprometido as reformas liberais e com a estabilização do regime, segue tentando reocupar parte do espaço perdido na estrutura de poder e provar para a burguesia que ainda pode ser útil para iludir o povo.
É evidente que também devemos ser parte ativa dos movimentos impeachment, tomando o Fora Bolsonaro como instrumento para denunciar todo o retrocesso econômico que o bolsonarismo representa e os mecanismos de opressão que esta corrente legitima. Contudo, nestes movimentos é imperativo destacar também as diferenças da política revolucionária frente ao liberalismo e ao reformismo socialdemocrata.
Assim, além da defesa pela vacina, emprego e auxílio emergencial, reivindicações que se tornaram praticamente consenso nos movimentos unitários, é fundamental que nossa propaganda e agitação comece a esboçar saídas para os problemas mais estruturais do país, como desenvolvimento, industrialização, aprofundamento da exploração e outros.
Neste sentido, um tema que começa a predominar nas angústias da classe trabalhadora (e por isso deve estar no centro das preocupações dos revolucionários) é o problema da reestruturação das relações de trabalho. As ações da burguesia para ampliar a exploração sobre os trabalhadores tem produzido uma miríade de novas relações, como trabalho remoto, contrato intermitente, e uma infinidade de outras formas de precarização do trabalho e da vida – que são defendidas ou legitimadas pelos liberais e reformistas socialdemocratas.
É fundamental que os revolucionários se situem nas batalhas que serão travadas em torno destas questões. Mas, para isso, é preciso nos debruçar, desde já, para compreender estes problemas e promover o mais amplo debate possível sobre as alternativas a serem postas trabalhadores. Os conflitos entre as frações burguesas no andar de cima talvez venham a nos conceder um pouco mais de tempo para avançarmos neste campo, mas é preciso começar já.